quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Conversas sobre o Ofício de Mestre


“Nossa Memória”. Assim destacava um cartaz na entrada da escola. Fizeram uma bela exposição. Alunos, professores e a comunidade observando tudo. Eu também observava curioso velhas fotos da vida escolar, de seus mestres e alunos. A ordem da exposição seguia a linha do tempo. As fotos de inauguração da escola e de várias festas e formaturas, das passadas e das mais recentes. A criançada tentando identificar-se, “olha o uniforme e o cabelo! Que antiquados!” em outro canto um grupo de professoras fazia seus comentários: “passam os anos e continuamos tão iguais!” “ É, mas um pouco mais moderninhas”, comentou uma professora.
Nos alunos a surpresa alegre de serem outros. Nos mestres a surpresa inconformada de que não deixamos de ser os mestres que outros foram. Para as professoras aquelas fotos eram mais do que a memória da escola, eram sua Memória. Descobriam-se tão iguais no passado! No silêncio de seus olhares, uma viagem de volta a um presente incômodo redescoberto na “Memória”.
Não há como olhar-nos sem entender que o que procuramos afirmar no presente são traços de um passado que mudou menos do que imaginávamos. O reencontro com “Nossa memória” nos leva ao reencontro com uma história que continuamos tão iguais os mestres de outrora e de agora? Porque repetimos traços do mesmo ofício, como todo artífice e todo mestre repetem hábitos e traços, saberes e fazeres de sua maestria. Nosso ofício carrega uma longa memória. Guardamos em nós o mestre que tantos foram. Podemos modernizá-lo, mas nunca deixamos de sê-lo. Para reencontrá-lo, lembrar é preciso.

Os segredos e as artes de ofício


Escolhi intencionalmente o termo “ofício de mestre” porque nos remete a nossa memória. Alguns se estranharão com uma palavra não tão familiar – usar o termo ofício não se contrapõe ao movimento da categoria para afirmar seu fazer qualificado e profissional? Pretendo afirmar essa dimensão retomando a palavra ofício que incorpora esse movimento.
O termo ofício remete a artífice, remete a um fazer qualificado, profissional. Os ofícios se referem a um coletivo de trabalhadores qualificados, os mestres de um ofício que só eles sabem fazer, que lhes pertence, porque aprenderam seus segredos, seus saberes e sua arte. Uma identidade respeitada, reconhecida socialmente, de traços bem definidos. Os mestres de ofício carregavam o orgulho de sua maestria. Inquietações e vontades tão parecidas, tão manifestas no conjunto de lutas da categoria docente.
No auge de uma greve e nos múltiplos congressos e seminários que acompanho afloram saberes e segredos aprendidos. Aflora o orgulho de ser professor, conquistado nas lutas para ser socialmente reconhecido. Quando termina uma mobilização da categoria, não fica apenas a ressaca de reivindicações não atendidas. Ficam auto-imagens reconstruídas. Os desejos agora são recordações. O mesmo sinto quando nos despedimos depois de alguns dias de congresso e encontro. Fica mais do que boas fala, anotações de relatos de experiências. Ficamos nós mais convencidos, até orgulhosos de nossa identidade coletiva. Os desejos agora são auto-imagens.
Continua, ainda, a pergunta? Por que falar em ofício de mestre? Tenho ainda outro motivo. O termo ofício não nos remete a um passado artesanal? Possivelmente seja a hipótese que costura estas reflexões: há constantes no fazer educativo que não foram superadas. Mas antes incorporadas, mantidas pela moderna concepção da prática educativa. E mais, o pensar e fazer educativos modernos têm como referência qualidades que vêm de longe e perduram no trato da educação e socialização das novas gerações. A educação que acontece nas escolas tem, ainda, muito de artesanal. Seus mestres têm que ser artesãos, artífices, artistas para dar conta do magistério.
O saber-fazer, as artes dos mestres da educação do passado deixaram suas marcas na prática dos educadores e das educadoras de nossos dias. Esse saber-fazer e suas dimensões ou traços mais permanentes sobrevivem em todos nós. O conviver de gerações, o saber acompanhar e conduzir a infância em seus processos de socialização, formação e aprendizagem, a perícia dos mestres não são coisas do passado descartadas pela tecnologia, pelo livro didático, pela informática ou pela administração de qualidade total. A perícia dessas artes poderia ter sido substituída por técnicas, entretanto nem os tempos da visão mais tecnicista conseguiram apagar estas artes, nem os novos tempos das novas tecnologias, da TV, da informática aplicados à educação conseguirão prescindir da perícia dos mestres. Educar incorpora as marcas de um ofício e de uma arte, aprendida no diálogo de gerações. O magistério incorpora perícia e saberes aprendidos pela espécie humana no longo de sua formação.
Muitos saberes de muitos ofícios foram destruídos pela industrialização, pelo avanço das máquinas, da tecnologia, da incorporação do saber operário e do seu controle. Processos tensos de eliminação dos ofícios e dos artífices... Processos históricos de expropriação do saber operário. Mas foi eliminado mesmo o saber dos trabalhadores ou houve resistências e reapropriações? Esse saber coletivo se afirmou como um saber de classe e de categorias. Os trabalhadores construíram nesses embates um saber próprio. Sabem mais, construíram sua nova identidade e seu novo orgulho. No campo da educação, da socialização, do desenvolvimento e formação humana esses processos seguiram o mesmo caminho? Esta é a questão que nos persegue. O que ficou em nós do velho ofício do magistério?
Escolher o termo “ofício de mestre” sugere que apostamos em que a categoria mantém e reproduz a herança de saber específico. Sem deixar de reconhecer pressões, embates nessa direção e também resistências às tentativas de administração gerencial, de expropriação do saber profissional dos professores através da organização parcelar do trabalho. Como ignorar esses embates no campo da educação? Como não perceber que o saber-fazer de mestre teve alterações profundas com as tentativas de incorporação desses processos “racionais” na gestão dos sistemas de ensino, na organização e divisão do trabalho?
Um olhar apenas centrado na história das políticas, das normas e dos regimentos, da divisão gradeada e disciplinar do currículo e do trabalho, da incorporação dos especialistas, da separação entre os que decidem, os que pensam e os que faze, nos levará fácil e precipitadamente a concluir pela eliminação de qualquer das tradicionais dimensões e traços do ofício de mestre. Mas cabem outros olhares que pretendam ser mais totalizantes para perceber que os traços mais definidores de toda ação educativa resistiram e perduram. Há uma resistente cultura docente.
O trabalho e a relação educativa que se dá na sala de aula e no convívio entre educadores(as)/educandos(as) traz ainda as marcas da especificidade da ação educativa. A escola e outros espaços educativos ainda dependem dessa qualidade. As tentativas de racionalização empresarial não conseguiram tornar essa qualificação dispensável. Além do mais, para que substituir uma escola centrada nas relações interpessoais e em processos e saberes artesanais, por uma escola centrada na racionalidade empresarial, na desqualificação do trabalho, se o trabalho qualificado dos mestres é tão barato?
Conversar sobre o ofício de mestre tem ainda outra motivação: é entre nós e sobre nós que conversamos em tantos encontros, congressos e conferências, em tantas tentativas coletivas de construir a escola e de nos construirmos como profissionais. Por todo lado e a qualquer pretexto, se inventam encontros, mais da categoria do que oficiais. Encontros onde o olhar é sobre a prática, o fazer e pensar educativo, sobre os projetos de escola, sobre as áreas do conhecimento, sobre as condições de trabalho, salariais, de carreira, de estabilidade. Sobre nossa condição e identidade coletiva. Quanto mais nos aproximamos do cotidiano escolar mais nos convencemos de que ainda a escola gira em torno dos professores, de seu ofício, de sua qualificação e profissionalismo. São eles e elas que a fazem e reinventam.

Referência bibliográfica: ARROYO, M. Ofício de Mestre, Imagem e auto-imagem, Editora Vozes, 7ª ed. Petrópolis, 2000.

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